sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A Casa das Almas

Ninguém sabe ao certo quando ela foi construída, mas todos sabem que foi desativada sob estranhas circunstâncias até hoje não explicadas de forma convincente. Mas, independente disso, lá está ela, sozinha em meio ao campo, com apenas uma estreita estrada de terra, que no passado era o único caminho em meio ao ralo matagal que levava até o portão principal da Igreja de Tampadas.
Tampadas é o nome do pequeno vilarejo localizado no interior do país; uma pequena cidade que ainda não tem luz elétrica, e quase não tem população também – muitos foram embora após o fechamento do único templo cristão do local; e os que ainda vivem por lá, não chegam perto da pequena igreja de ar sombrio e desolado.
Embora a população local evite aquele solitário templo, o aviso de não aproximação faz parte da tradição oral daquele povo, e os forasteiros que porventura passam por ali não tem conhecimento da história daquela estranha igreja – muitos nem ao menos tomam conhecimento de que há uma. Dizem que os que por ali se aventuraram nunca mais foram vistos.
Um dia, um desses viajantes chegou até o pequeno vilarejo caminhando. Carregava apenas uma mochila de viagem e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço. Chegou até o único bar existente, bebeu um refrigerante com tamanha sede que parecia que não bebia nada há dias; quando terminou, puxou conversa com algumas pessoas que estavam por ali, fazendo perguntas sobre o vilarejo, modo de vida e outras coisas sem muita relevância. Depois de ouvir as respostas, disse que estava de férias. Estava fazendo um passeio pelo Brasil, visitando apenas as pequenas cidades e os vilarejos do interior, tirando fotos e escrevendo um diário.
Após duas ou três horas de conversa e muitas fotos, pagou a bebida e saiu. Quando estava na estrada de saída do vilarejo, viu uma estreita estrada de terra, já coberta pelo mato alto que crescia à sua volta e quase escondia sua entrada. Sem ninguém por perto, o estranho resolveu percorrer aquela estrada, curioso para saber aonde iria dar, já que as casas e o pequeno comércio do vilarejo encontravam-se concentrados na extremidade sul. Com muita dificuldade, caminhou por cerca de dez minutos, até sair em um campo aberto, cercado por algumas árvores que pareciam tão velhas quanto a própria humanidade. Algumas com troncos retorcidos, outras com troncos que pareciam terem sido queimados; mas todas as árvores tinham em comum o fato de não terem folhas.
Observando ao redor, pôde perceber, a alguns metros à frente da estrada, uma pilastra de pedra com quatro ou cinco metros de altura que servia de pedestal a um anjo de mármore que um dia fora branco, mas agora estava tomado pela terra e pelas marcas da chuva e do tempo. Havia algo na expressão do anjo - que olhava para cima - que o deixou triste e com um sentimento angustiante de solidão. Teve certeza de que o anjo começou a chorar quando olhou para ele.
Alguns metros adiante viu uma igreja, de aspecto sombrio e de abandono. Suas paredes, de pedra, já mostravam o quanto o tempo pode ser cruel; a entrada principal consistia-se de uma porta dupla de madeira pintada de azul, já descascada e bem deteriorada. Duas pequenas janelas pairavam como olhos atentos em cada lado da porta. Estendendo-se verticalmente acima do telhado havia uma torre, aonde se podia ver o grande sino de bronze totalmente imóvel, como se estivesse em seu repouso eterno. Chegando perto, percebeu que o portão principal estava fechado, e não parecia haver ninguém por perto. Ao forçar um pouco a porta, esta se abriu, dando passagem para o salão principal.
A única iluminação dentro da igreja era proveniente dos raios de sol que passavam pelas pequenas janelas – sem vidros – nas paredes laterais. Marcas de água que há muito correram por ali indicavam um problema no telhado, e tornavam as paredes um pouco melancólicas. Os bancos de madeira já estavam quase ou totalmente consumidos pelos cupins. Encantado com a beleza sinistra do lugar, o estranho tirou diversas fotos, e dirigiu-se ao que parecia ser a sacristia, no final de um dos corredores.
Quando o estranho passou pela porta, um ar de curiosidade e espanto tomou conta do seu outrora estado de empolgação. A sala, que devia ter por volta de quinze metros quadrados, tinha todas as quatro paredes do recinto cobertas por fotografias antigas, todas com um tom de sépia, emolduradas em belas molduras – todas feitas artesanalmente – e embora aparentassem estar ali há muito tempo, ainda mantinham um bom estado de conservação. Do chão ao teto, tudo estava coberto por fotografias. Embora não houvesse qualquer texto que identificasse as fotos, ele pôde perceber que eram retratos de famílias.
Por vários minutos o estranho ficou ali, olhando as fotos, apreciando aquele ar nostálgico, admirando aquela estranha tristeza implícita no rosto das pessoas – que, curiosamente, não sorriam nas fotos. Algumas fotos aparentavam ser da década de 20, outras de 30, mas certamente nenhuma delas era de depois da década de 40
Depois de olhar rapidamente as várias fotografias, acabou parando em uma – que talvez tenha sido escolhida aleatoriamente, ou apenas tenha chamado a sua atenção por algum motivo qualquer. Na foto, uma família de nove pessoas posava de forma quase mecânica. Como que a estudando, o estranho ficou ali, por vários minutos, analisando cada detalhe existente na imagem. Com os olhos cheios d’água e um sentimento de vazio, proferiu um palavrão ao mesmo tempo em que saltava para trás, quando percebeu que uma das crianças da foto começou a chorar. Ele coçou os olhos, achando estar vendo coisas, e sacudiu a cabeça, mas percebeu que não só a criança chorava como as outras pessoas da família gritavam em extrema agonia, com a dor estampada em seus rostos; ao mesmo tempo, pareciam desesperadas para sair da foto.
Ainda atordoado pela visão que acabara de ter, olhou ao redor e percebeu que em todas as fotos a cena se repetia: todas as pessoas gritavam, choravam, e tentavam desesperadamente sair de suas pequenas prisões particulares. O som misturado de choro de crianças e adultos, com os gritos de agonia, era como uma faca que atravessava seu cérebro. Naquele momento, ajoelhou-se tapando o máximo que pôde os ouvidos e fechou os olhos. Em seu interior, parecia estar sofrendo como aquelas pessoas. Chorou como se estivesse também preso em uma moldura feita artesanalmente.
Algum tempo depois – ele não podia mensurar se foram minutos ou horas – levantou-se, mas ainda sentia o desespero das pessoas ao seu redor. Eram pessoas, não eram? Ou eram apenas suas almas aprisionadas para toda a eternidade em uma foto – ou o que parecia ser uma foto?
Não suportando mais a agonia de estar confinado naquela pequena sala, correu, dirigindo-se à porta pela qual entrara, mas só teve tempo de virar-se para perceber que não havia qualquer porta ali; todas as quatro paredes estavam cobertas de fotografias, e não havia portas ou janelas por onde sair. Gritando, atirou-se desesperado contra as paredes, tentando, inutilmente, encontrar uma forma de sair daquele lugar. Com bruscos movimentos, arremessou as fotos para longe das paredes, mas, a cada porta-retrato que caía, um novo surgia em seu lugar, e mais e mais pessoas gritando, chorando, em uma grande sinfonia desafinada.
Sem qualquer esperança de sair daquele lugar misterioso, após muito gritar e chorar, percebeu que em uma das paredes havia uma moldura com uma foto em que não havia ninguém, apenas um quarto. Analisou aquele estranho objeto mais de perto, ao mesmo tempo em que tentava entender o que se passava naquele lugar. Percebeu no pequeno cômodo dentro daquela foto alguma familiaridade, e, novamente, entrou em pânico: aquele havia sido o seu quarto quando criança. A mesma cama, o mesmo tapete em forma de palhaço, a mesma janela próxima à cama. Naquele momento, o pânico foi tomado por uma saudade; saudade de tempos que nunca mais voltariam, e entendeu que o objetivo de qualquer fotografia era congelar um determinado momento no tempo; um momento que nunca mais será esquecido e ficará ali para sempre. Lembrou-se de quantas vezes desejou ter congelado o tempo.
Fechou os olhos, e a sacristia foi tomada por um imenso clarão, uma intensa luz vermelha. Quando apagou, o quarto havia voltado ao seu estado anterior, a porta encontrava-se no mesmo lugar que estava quando o estranho a cruzou. O estranho, não entanto, não estava mais ali; agora, ele fazia parte daquele imenso mural nostálgico, e naquele momento, ele estava de volta ao quarto que fora seu quando tinha 3 anos de idade. Passaria toda a eternidade preso àquele lugar, e talvez um dia implorasse para sair dali, da mesma forma que todas as outras pessoas que também faziam parte daquele lugar.